quarta-feira, 3 de setembro de 2014

I Guerra Mundial: a indústria da morte

Há 100 anos atrás, o mundo estava em guerra. O primeiro conflito à escala planetária (1914-1918) constitui um dos marcos mais importantes da História Contemporânea, pois o seu desenrolar originou um conjunto de profundas transformações. A partir desse momento, o mundo nunca mais seria igual: nascia uma nova era, que colocava fim à “idade dourada da segurança” (Stefan Zweig); nascia a indústria da morte, que se aperfeiçoa cirurgicamente até aos dias de hoje…
            A assinatura do armistício, a 11 de Novembro de 1918, em Rethondes (França), deixava para trás cerca de 10 milhões de cadáveres, mais de 25 milhões de mutilados, uma Europa praticamente destruída e progressivamente dominada pela inflação galopante/desemprego, impérios desfragmentados e, por exemplo, uma nova configuração geo-política internacional, com os EUA a assumirem o papel de principal potência mundial e a Rússia, já sob o domínio de Lenine (após a revolução socialista soviética de 1917), a atrair a curiosidade (e o receio…) do mundo. Alguns historiadores consideram mesmo que o início do século XX pode ser associado, numa perspectiva mais abrangente, à I Guerra e, segundo creio, o mundo dos nossos dias nasceu naquela época, sendo que pouco do que aconteceu a seguir (desde logo, a ascensão dos regimes totalitários e a II Guerra Mundial) pode ser compreendido sem a sua existência.
            Ora, conversando recentemente com algumas pessoas mais idosas da minha aldeia, fiquei surpreendido com as prolíficas memórias familiares que ainda existem sobre este conflito, à primeira vista tão longínquo no tempo: afinal, à escala humana, um século parece por vezes uma eternidade! Pena é que esta “consciência histórica” não possa estender-se aos mais jovens…
            A I Guerra Mundial intersectou, de um modo bastante vincado, a História das famílias com a História da própria Humanidade. Daí que nas gavetas de muitos portugueses anónimos continuem escondidos vários tesouros. Em certo sentido, podemos dizer que esses esqueletos escondidos são cicatrizes que nunca se fecharam; portas das quais nunca se regressa incólume…
            Ao procurar identificar o nome de um combatente da aldeia onde cresci, morto na frente europeia, em 1918, fui surpreendido com a existência de, pelo menos, mais oito expedicionários, onde se contava uma outra vítima mortal da guerra. Uma fugaz passagem pelo Centro Social e Paroquial (Lar de Idosos) mais próximo ajudou-me rapidamente a depreender que um eventual alargamento do estudo desta temática a todo o concelho (Oliveira do Hospital) faria, por certo, disparar os números e desenterrar outros tesouros.
            Por agora, entre os cofres abertos, não posso deixar de partilhar aqui alguns dos dados que tive oportunidade de compulsar numa caderneta militar de um conterrâneo meu, documento esse que apresenta um invulgar estado de conservação, pese embora o facto de ter mais de um século! As suas capas pretas impecavelmente alinhadas, sem qualquer vinco no tecido, cumprem rigorosamente uma das indicações constantes logo na página inicial: “Não é permitido dobrar a caderneta”.
            A cédula militar em causa pertenceu a Alípio Esteves Borges (“Monteiro”), soldado n.º 2909, residente em Vila Franca (à época, do Ervedal), nascido em Novembro de 1893. O recrutado assentou praça quando tinha 19 anos (30 de Julho de 1913), para servir até aos 45 anos de idade, a cargo do distrito de Coimbra, no regimento de Infantaria.
            Aquando da recruta, o jovem agricultor saberia ler, escrever e contar, parecendo poder depreender-se da sua cédula militar que teria concluído a 3.ª classe. Retenha-se que, em 1910, a taxa nacional de analfabetismo rondaria os 75%, flagelo que haveria, em traços gerais, de perpetuar-se pelo tempo fora, pese embora o esforço feito pela jovem República no sentido de combater este problema (preocupação, de resto, fulcral para compreender a inauguração da Escola Primária de Vila Franca, ainda no antigo largo do Cruzeiro, por volta de 1911, no lugar anteriormente ocupado pela Capela de Santa Margarida – cf. “Monografia” escrita por José Marques Lopes: http://vilafrancadabeiranoticias.blogspot.pt/).
            Finalizada a instrução de recruta, em 30 de Abril de 1914, Alípio Borges foi integrado no Corpo Expedicionário Português (CEP) e embarcou para França, em 23 de Fevereiro de 1917, de onde apenas regressou, a título definitivo, em 23 de Julho de 1918. Mais tarde, acabaria por beneficiar de uma parca pensão e receberia uma medalha comemorativa dos combates travados pelo exército português, com a legenda “França 1917-1918”.
            Esteve, portanto, na frente de batalha europeia cerca de um ano e cinco meses, o que, de per si, nos permite imaginar algumas das dificuldades que, por certo, terá experimentado, nomeadamente durante a desgastante fase das trincheiras (v.g., no Inverno de 1917/1918, as temperaturas desceram aos 30 graus negativos, que congelavam a água existente nos motores; segundo Isabel Pestana Marques, os expedicionários portugueses chegaram a estar mais de um ano na linha da frente, ao contrário dos ingleses que eram rendidos trimestralmente)… Memórias que, por certo, terão acompanhado Alípio Borges até à morte, em 1972, e que, talvez, tenham sido reavivadas quando, no dia 1 de Janeiro de 1961, com 67 anos, voltou a ser obrigado a “apresentar-se” em Oliveira do Hospital, por certo no contexto do início da Guerra do Ultramar.
            Importará dizer que o primeiro contingente de tropas do CEP destinado à guerra na Europa embarcou em Lisboa, no final de Janeiro de 1917 (para África, os primeiros portugueses partiram logo em 1914). Após a instrução prévia, os expedicionários eram concentrados em Tancos (Vila Nova da Barquinha, Santarém), onde recebiam um treino mais intensivo, mas, sabemos hoje, profundamente desajustado à nova realidade bélica mundial, dada a proeminência da guerra química (veja-se o caso do gás mostarda), do poder da artilharia (a metralhadora pesada inglesa Vickers de 7,7 mm poderia disparar cerca de 600 projécteis por minuto), dos tanques, dos lança-chamas, do impacto da aviação militar e dos submarinos, entre outros recursos tecnológicos dramaticamente mortíferos e causadores de doenças até então desconhecidas, nomeadamente do ponto de vista mental (neurose de guerra).
            Aplicado o propalado “milagre de Tancos”, os expedicionários rumavam de comboio para Santa Apolónia, daí marchavam para Alcântara e, de barco, seguiam para o porto de Brest (França) e, finalmente, para a linha da frente (no total, seriam 55 mil portugueses a chegar à Flandres). Esse trajecto final até ao Norte da França seria, de resto, marcado pelas constantes paragens em várias estações, como nos recorda Isabel Pestana Marques, na sua incontornável obra Das Trincheiras, com saudade, na qual a historiadora partilha as conclusões extraídas ao longo de 18 anos de investigação.
            Escreveu Jay Winter que cerca de metade dos homens que morreram na I Guerra não têm túmulo conhecido. Numa iniciativa a todos os títulos meritória, o jornal Público tem vindo a editar diariamente uma série de suplementos sobre o conflito, procurando, assim, reerguer do esquecimento os combatentes nacionais, ainda hoje, repita-se, muitas vezes sepultados no vazio do anonimato, como acontece em África (Público, I Grande Guerra, n.º 4, 31 de Julho de 2014).
            No cemitério da minha aldeia nativa, o tempo tem-se encarregado de fazer desaparecer das lápides os nomes destes meus conterrâneos “serranos” que, no início do século passado, foram mobilizados pela jovem I República para combaterem em terras estrangeiras, por uma causa (mormente, no que se refere à Europa – principal palco do conflito) que pouco ou nada lhes diria, além da iminente certeza de uma morte anunciada pelos obuses e, tantas vezes, vislumbrada nos cadáveres, com os quais coabitavam nas trincheiras, já para não falar nas pulgas, piolhos, larvas, ratos, lama… Homens que, muitas vezes, mal conheciam os limites do concelho onde haviam nascido e que percepcionavam Lisboa como o outro lado do mundo…
            A I Guerra Mundial teve um impacto decisivo do ponto de vista político (contribuindo para o agudizar da crise da I República), mas os seus efeitos fizeram-se sentir igualmente no quotidiano das populações, nesse Portugal profundo, vincadamente rural, analfabeto, periférico e ainda bastante marcado pela matriz católica, pese embora o esforço de laicização empreendido pela jovem República, vertido na polémica Lei da separação das Igrejas do Estado, promulgada, em 1911, pelo Governo Provisório saído da revolução de 5 de Outubro de 1910.
            1917 e os anos seguintes ficaram marcados por sucessivos relatos de “aparições” que eclodiram por todo o país, sendo o mais paradigmático o fenómeno das alegadas “aparições” da Virgem Maria aos três pastorinhos (Francisco, Jacinta e Marta), na Cova da Iria (Fátima). Sintomaticamente, na memória de muitos habitantes de Vila Franca da Beira ainda paira a imagem das mães que rumavam diariamente ao santuário da Santa Margarida, para pedir o regresso, breve e saudável, dos seus filhos. Parece, pois, verificar-se um revivalismo do culto religioso, nesta época de fome, guerra e peste (Geoffrey Blainey refere mesmo que, durante a guerra, por cada soldado morto por balas, granadas ou explosivos um morria de doença e, além disso, segundo aquele historiador australiano, a gripe “espanhola”, surgida na ressaca do conflito, matou ainda mais pessoas do que a I Guerra).
            Procurando não cair na tendência de fazer hagiografia, importa hoje, cada vez mais, recordar estes homens esquecidos na voragem dos tempos. De Vila Franca da Beira, eis a lista, naturalmente provisória (com as naturais imperfeições daí decorrentes), daqueles que terão participado no primeiro conflito à escala planetária (um trabalho apenas possível em grande parte graças à preciosa memória das gentes que me viram crescer): Celestino Pais, Alípio Esteves Borges, Aires Lopes Figueiredo, Eduardo Borges de Campos, Gabriel Tavares Gonçalves, Sebastião Esteves Simões, Carlos Fernandes Lopes, Sebastião e Abel, sendo que os dois últimos (cujos apelidos terão ainda de ser confirmados) estão incluídos entre os cerca de 8 mil portugueses que perderam a vida na Flandres e em África.
            Segundo creio, valeria a pena alargar a lista a todo o concelho, pelo que deixo aqui o repto ao leitor, que ainda conserva algum tipo de memória sobre este assunto, para que a inscreva no espaço consagrado aos comentários, que, felizmente, as novas tecnologias nos permitem utilizar e que poderiam trazer inequívocas vantagens para todos, caso fossem utilizadas de um modo mais eficiente e, digamos, menos maledicente... 
            Na sua obra Uma breve história do século XX, Geoffrey Blainey conclui que, Albert Einstein, inadvertidamente, “ao pregar uma versão de pacifismo numa altura inapropriada”, contribuiu, dada a sua influência, “para enfraquecer alguns dos entraves colocados à subida de Hitler ao poder”. Nestes novos tempos, em que a guerra parece ter entrado numa nova era (desde logo, com os drones e os conflitos localizados caracterizados por um poder de destruição total), importa não descurar a vigília. Afinal, uma nova guerra mundial poderá estar mesmo ao dobrar da esquina e a verdade é que ninguém poderá partir para um novo conflito com as ilusões que muitos experimentaram, aquando da declaração de guerra da Inglaterra e França à Alemanha e ao império Austro-Húngaro (Agosto de 1914), pois a indústria da morte tem as chamas mais vivas do que nunca…
            Conhecer a guerra através das pessoas de carne e osso que a viveram e que, afinal, são os nossos familiares directos ajudar-nos-á, por certo, a perceber que, por trás da banalidade com que assistimos, durante o almoço, a uma guerra do outro lado do mundo, existem dimensões da vida que nenhuma palavra poderá descrever. Afinal, o sofrimento e o drama nunca têm limites. Quando os estudamos é que compreendemos que nenhuma guerra acaba com as guerras. Quando os vivemos é que realmente sentimos…
            Termino com Marc Ferro, que, no livro A grande guerra 1914-1918, cita as dramáticas palavras escritas pelo combatente Raymond Naegelen, a propósito da vida infernal nas trincheiras. No ano em que se completam 100 anos após o início da I Guerra e parece proliferar a tendência para derrubar ainda mais as pontes entre as Nações (crescente isolamento proteccionista…), vale a pena pensar nelas:
            “Sobre toda a frente do cabeço de Souain, desde Setembro de 1915, os soldados de infantaria ceifados pelas metralhadoras jazem estendidos de barriga para baixo, alinhados como num exercício.
            A chuva cai sobre eles, inexorável, e as balas partem os seus ossos embranquecidos.
            Uma noite, Jacques, durante uma patrulha, viu sob os seus capotes descoloridos ratazanas a fugir, ratazanas enormes, engordadas a carne humana. Com o coração a bater, ele rastejava em direcção a um morto. O capacete tinha caído. O homem apresentava a cabeça contorcida, vazia de carne: o crânio à vista, as órbitas vazias, os olhos comidos. A dentadura tinha deslizado sobre a camisa podre e da boca escancarada saltou um bicho imundo”…

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)

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